Descriminalizando o tapa na pantera

marijuana-smoking-131013Quem não se lembra do vídeo de Maria Alice Vergueiro, de oito anos atrás, protagonizando uma maconheira inveterada que cunhava o ato de fumar um baseado de “dar um tapa na pantera”? Se por um lado o vídeo fez sucesso por ser hilário, encarando o uso da droga de maneira chistosa, para muitas pessoas ter usado maconha não teve nada de engraçado.

Maconha pode fazer mal. Coordenando um ambulatório de psicoses cansei de ver casos de esquizofrenia deflagrados pelo uso da droga. A história se repetia. O indivíduo já não ia lá muito bem na vida, adulto jovem ou adolescente, e foi fumar um baseado. Algumas poucas vezes depois de ter usado a droga teve início o primeiro surto. Um segundo padrão de crise está relacionada a altas doses e frequência aumentada de uso, o que também pode gerar déficits cognitivos importantes como os mostrados no “tapa da pantera”.

Meu primeiro impulso foi ser radicalmente contra a descriminalização. “Vai aumentar o consumo escancaradamente”, pensei. Mas aí ponderei, e fui pesquisar, pois o debate sobre a descriminalização é antigo em outros países do mundo.

Um dos pioneiros nesse assunto é a Holanda. Em 1976 houve a despenalização do uso de maconha, no país: a droga continuava sendo proibida, mas não havia enquadramento ao usuário. Anos mais tarde seguiu-se a legalização de fato da droga. Três questões importantes:

  • O uso de maconha é maior na Holanda do que em outros países? Algumas pesquisas mostraram que o consumo de maconha na Holanda é igual ou menor ao consumo médio de maconha nos Estados Unidos, que adota uma política anti-canabis severa. Em uma delas comparou-se a “carreira” de usuários de maconha em San Francisco e em Amsterdã, e concluiu-se que elas eram bastante parecidas, apesar da enorme diferença na política anti-drogas; idade média de primeiro uso por volta dos 16 anos, pico máximo de consumo 2 a 3 anos depois seguido de gradual declínio. A duração média da carreira foi maior em San Francisco, com 15 anos, do que em Amsterdã, com 12 anos. Além disso, o número de pessoas que usaram maconha mais de 25 vezes durante a vida foi significativamente maior em San Francisco do que em Amsterdã; o mesmo valeu pra pessoas que consumiram outras drogas. Com relação aos vizinhos europeus, não há grandes discrepâncias, também apesar das diferentes políticas: o uso em média é igual ou discretamente maior nos Países Baixos.
  • Os níveis de uso de maconha subiram após a despenalização em 1976? Mesmo após a despenalização, o uso de maconha permaneceu estável por 7 anos após 1976. Só aumentou quando coffee-shops ampliaram a propaganda relacionada à droga.
  • A legalização diminuiu a associação entre uso de maconha e outras drogas? Em geral pensa-se a maconha como uma substância gateway (porta de entrada) para outras drogas; ou seja, a pessoa experimenta a maconha para depois experimentar outras drogas. A estratégia dos legisladores holandeses era justamente a de separar um mercado de “drogas leves” (incluindo a maconha) do mercado de drogas pesadas (heroína, cocaína, etc.). Tal política não conseguiu eliminar o fato de a maconha funcionar como porta de entrada, mas possivelmente diminuiu esta associação.

Portugal apresenta outra experiência interessante sobre descriminalização do porte e do uso não só da maconha mas de drogas ilícitas em geral, implantada em 2001. Após descriminalização o uso de drogas aumentou; mas quando se olhou países vizinhos como França e Espanha, os aumentos no mesmo período foram similares, desqualificando assim um efeito direto da descriminalização. Além disso, neste mesmo período o uso problemático de drogas (principalmente injetáveis) aumentou na Itália e em países vizinhos, enquanto que em Portugal diminuiu. Portar ou usar droga deixou de ser crime para ser uma ofensa pública ou administrativa; o usuário era referido a uma comissão composta por advogado, médico e assistente social, que julgavam se a pessoa deveria ser penalizada, encaminhada a um centro de tratamento, etc. Isso fez com que olhassem o usuário de forma mais integral, além de acarretar a diminuição dos custos e melhora da eficiência da polícia portuguesa, uma vez que eles puderam se focar mais no tráfico, em traficantes do alto escalão, ao invés do usuário comum.

Usar ou não usar maconha é uma opção do indivíduo. Na realidade, esta opção depende menos das leis vigentes do que se acredita, tomando-se como base a pesquisa entre San Francisco, com leis punitivas para o usuário, e a Amsterdã legalizada. Lembrando-me das pessoas que cuido, desde as que usam esporadicamente, de maneira recreativa a canabis, até o usuário mais pesado, percebo que realmente elas não deixariam de usar se fosse crime. Também teriam experimentado a droga do mesmo jeito no passado. Pouco importaria a proibição.

Seria bom se pessoas vulneráveis não usassem a droga. Assim como seria bom também se estas pessoas desistissem de viver em grandes conurbações inóspitas, ou se não migrassem para outros países, outros fatores de risco para a esquizofrenia. Mas não podemos tornar estas coisas leis, pois são escolhas dos indivíduos, fazem parte da vida.

Descriminalizar não é fazer apologia; é respeitar a liberdade individual e as escolhas pessoais. É olhar o ser humano de maneira mais realista. Descriminalização não aumenta o consumo. Mas descriminalizar e não instruir pode também ser problemático. A verba gasta com a prisão de usuários devia ser gasta com conscientização sobre os riscos. Afinal, todos sabem que cigarro dá câncer, mas quantos sabem que maconha pode deflagrar esquizofrenia?