O poder da ficção: Orson Welles e a transmissão do pânico

orson-welles-cbs-radio-02Para mim ficar muito tempo sem qualquer tipo de ficção é ruim. Ler um livro, ver um filme no cinema, assistir seriados na televisão, peças de teatro, são todas coisas que me fazem bem. Demorei a perceber, mas a ausência destas atividades na minha vida afeta meu estado de espírito negativamente.

A ficção tem um papel importante na vida dos seres humanos. Pode-se entender a ficção sob diversas perspectivas; o objeto transicional de Winnicott, o imaginário de Lacan, por exemplo. A teoria literária diz que quanto melhor a ficção conseguir estabelecer uma conexão com o leitor, através de metáforas, em uma tênue linha entre realidade e fantasia, mais eficaz ela é. E, quanto melhor a sutileza desta linha, mais poder terá a ficção. Mas há momentos em que esta linha entre realidade e fantasia é tão tênue que confunde muitas pessoas.

Foi o caso de Orson Welles e a “transmissão do pânico” (panic broadcast), em 1938. Welles ainda não tinha atingido sua grande fama e comandava um programa de rádio na CBS chamado Mercury Theatre on the Air. Era um programa destinado à transmissão de histórias e contos no rádio. Em outubro daquele ano Welles decidiu fazer uma adaptação de “Guerra dos Mundos”, de Herbert George Wells, história sobre a invasão da Terra por extra-terrestres de Marte, a qual muitos conhecem hoje pelo filme estrelado por Tom Cruise. Apesar de a adaptação ter sido anunciada previamente pelo canal, a conjugação de alguns fatores fizeram com que a ficção se tornasse realidade para alguns ouvintes. Em primeiro lugar, Welles possuía uma sensibilidade muito aguçada para os meios de mídia. Adaptações prévias como Drácula de Bram Stoker mostraram o talento do artista para transpor romances para a rádio; a elaboração de efeitos sonoros trabalhados minuciosamente, a inserção de diálogos que não existem na obra original, para facilitar a adaptação, a utilização de todos os recursos de tom de voz, e assim por diante. “A radio como um teatro da imaginação”, dizia. Para dar mais veracidade à “Guerra dos Mundos” Welles optou por fazer a história em forma de flashes de notícias. Assim, o programa começava como uma pretensa transmissão de um concerto de música clássica. No entanto, este era sucessivamente interrompido por “boletins especiais” anunciando notícias; explosões observadas no planeta Marte, explicações de cientistas sobre as explosões. Novamente música, e depois nova interrupção para informar que um cilindro de metal caiu em Nova Jersey. Um repórter se direciona ao local, observa algo saindo do cilindro, e de repente a transmissão fica em silêncio por 10 segundos. Sucessivamente novos boletins vão sendo dados, sobre vítimas de extraterrestres, novos cilindros caindo em outras regiões do país, etc. Além do formato em boletins noticiários, interrompendo a pretensa apresentação musical, a transmissão foi caprichosamente realizada de maneira contínua, sem intervalos, por mais de 40 minutos. Isso fez com que ouvintes de um programa da emissora concorrente, próxima à frequência da CBS, mudassem de canal durante o intervalo e se deparassem com a terrível informação de que a Terra estava sendo invadida por marcianos. Como não havia informe de que aquilo era uma ficção, muitos se fixaram no programa de Welles, acreditando de fato serem boletins verídicos. Outro fator que quebrou a linha entre realidade e ficção foi a época em que Welles fez a transmissão. Pouco se sabia sobre o planeta Marte naquele momento, mas havia já uma corrente de pensamento que acreditava que havia vida em Marte. Tal corrente não ganhou nenhuma atenção da ciência na época, mas ganhou um artigo na The New York Times em 1911, intitulado “Engenheiros marcianos constroem imensos canais em dois anos”. Acreditavam que ainda poderia haver engenheiros extraterrestres trabalhando no planeta, pelo que se podia observar em uma suposta mudança na superfície do mesmo. Este imaginário presente em um tenso período pré-segunda guerra mundial, onde a transmissão, em um formato copiado por Welles, frequentemente era interrompida para boletins noticiários sobre as forças nazistas na Europa, imprimiram mais veracidade à história.

Por fim, o que gosto de apontar sempre é o caráter mais solto de algumas representações artísticas como a literatura e, neste caso, a literatura lida na rádio. Pelo fato de não trazer imagens, em ambos os casos ficamos mais livres para imaginar. O caráter de vagueza da literatura deixa o leitor solto para elaborar as imagens que quer; os medos podem ser maiores, as alegrias e felicidades mais pessoais. Welles utilizou com primazia esta vantagem, deixando informações vagas, soltas no ar.

Resultado disso: inicialmente atribuíram diversas mortes em acidentes rodoviários à transmissão, alegando que as pessoas estariam em pânico, fugindo da região afetada. Atribuíram também mortes por suicídio e ataques cardíacos à transmissão de Welles. Evidentemente Welles e a CBS foram alvos de diversos processos. Posteriormente viu-se que nenhuma morte pôde ser atribuída diretamente à transmissão, apesar de todo o pânico envolvido.

A “transmissão do pânico”, como ficou conhecida, não só prova o poder que a ficção pode ter, mas também as consequências que podem existir quando não se tem clara a linha entre ficção e realidade. Conheço alguns casos de pessoas que tiveram crises psicóticas ao lerem livros, assistirem a filmes, etc., aí por elas mesmas terem um senso frágil de realidade, facilitando o rompimento desta linha com a qual estas obras brincam. Mas se por um lado, apesar de todos os problemas gerados, a transmissão fez grande sucesso e alavancou a carreira de Welles, possibilitando que este filmasse depois “Cidadão Kane” (apontado por muitos como um dos melhores filmes do século passado), a transposição de “Guerra dos Mundos” para o cinema para mim em particular foi um fracasso. Chavões batidos como o pai inseguro e fracassado e tantos outros deixam o filme monótono e sem graça. E afinal, se hoje chegamos a Plutão, Marte acabou ficando batido. (Quem sabe uma trama sobre invasão por plutonianos daria mais certo?)

(Guerra dos Mundos em 1938: a “Transmissão do Pânico”, no Youtube)