Notas sobre o filicídio em Ribeirão Preto: invisibilidade, frustração e álcool

07morto-rnInfelizmente esta é uma cena comum. E aconteceu de novo, desta vez no interior de São Paulo, em Ribeirão Preto: pai ou mãe que se envolvem com álcool e/ou outras drogas e se tornam violentos em casa. O menino Jonathan Bidoia Neres, de 12 anos, morreu após ter sido agredido pelo pai, conforme relata reportagem da Folha.

Há que se chamar atenção para alguns aspectos deste fato. O primeiro deles, e o mais evidente, é a covardia e a brutalidade contra a criança, que ainda é comum nos dias de hoje. Em geral este tipo de informação fica debaixo do tapete, mas como psiquiatra e psicoterapeuta percebo que os relatos de maus-tratos a crianças são extremamente frequentes. Não é raro ouvir daquele que se coloca à sua frente para procurar ajuda para suas enfermidades da alma, que quando criança o pai ou mãe lhe batia, muitas vezes estando sob o efeito de álcool. O pai alcoolista agressivo é uma figura bastante presente, trazida pelos pacientes nos consultórios e ambulatórios de saúde mental por aí afora. Pelo visto, não é uma coisa das décadas que se passaram, não é uma coisa de culturas distantes, mas ainda um problema atual.

Em segundo lugar, devemos olhar para o filicídio em si e pensar no que esta relação doente entre pai-filho nos faz pensar. Um pai que resolve usar o filho para desaguar suas frustrações com a vida. Quantas vezes não vemos isto também acontecer? A violência contra o filho não deve ser encarada apenas nos casos-limite onde uma vida é tirada, mas também nas sutilezas do dia-a-dia, como nos silenciosos episódios de negligência, ou nos casos de agressão verbal domiciliar, onde ninguém vê. Não foram raras as vezes nas quais ouvi confissões de pessoas que, quando crianças, foram ignoradas pelos pais, às vezes gerando consequências muito graves para elas (como quando denunciavam abuso físico ou sexual e não eram ouvidas). Pais ausentes, deixando menores de idade enfrentarem a realidade de um mundo que muitas vezes é cruel e perverso.

Envolver-se e correr o risco de despejar as frustrações, ou negligenciar? Lembra-me de um comercial muito hilário de anos atrás, onde um psicanalista abria a porta e gritava “a culpa é da sua mãe!”, fechando-a logo em seguida. É evidente que não devemos entrar em uma querela técnica sobre o peso da culpa, processos de catarse, super-interpretações de fatos, etc., pois tratava-se de uma sátira. Mas o caso do filicídio tem de nos fazer pensar que talvez uma das maiores tarefas dos pais seja a estarem antenados na vida do filho sem que passem as próprias frustrações para eles. Hoje em dia pipocam as receitas prontas de como criar ou não criar os seus filhos, sempre precedidas de um numeral mágico: 10 maneiras disso, 7 coisas que não se devem falar, 9 sinais daquilo, 34298 coisas para fazer com seu filho na vida. Costumo falar que não há receita, mas que se deve estar tranquilo consigo mesmo para criar um outro ente. Pois uma questão não resolvida pode passar para o filho em sua forma similar, como uma herança psicológica, ou em sua forma inversa. Por exemplo o pai que tem medo de altura e compensatoriamente cria um filho que tem medo de menos de altura, que acaba se envolvendo demasiadamente em situações com tal risco. Ou o filho que vai ser engenheiro, no fundo a contragosto, mas para agradar o desejo dos pais que não conseguiram sê-lo.

Por fim, temos de pensar no pai violento do caso. Aqui entra a pandemia de uso de álcool para suportar a invisibilidade social. Pessoas socialmente marginalizadas que acabam muitas vezes usando o artifício do entorpecimento gerado pela bebida para fugir da própria pressão que a vida invisível lhes coloca. É evidente que ninguém aqui está defendendo o criminoso. Mas não podemos olhar este caso como algo isolado, mas sim tomá-lo como um fenômeno que faz parte de uma determinada cultura. Os que trabalham com as leis e os médicos de unidades de emergência sabem muito bem que os casos de violência doméstica se dão majoritariamente quando as pessoas estão embriagadas. Nas populações mais desfavorecidas economicamente faz-se presente um alheamento que por um lado é necessário para suportar a própria condição de desamparo, mas que muitas vezes toma forma de violência e de uso de entorpecentes. No entanto, a enorme parcela destes pequenos crimes do dia-a-dia acabam parando debaixo do tapete, enquanto que apenas os mais graves chegam ao noticiário.